megas x nanos II

decameronNesse tempo de mudanças climáticas e politicos alheios às necessidades dos povos, ocorreu-me transcrever um trecho do livro No Mesmo Barco – Ensaio sobre Hiperpolítica, do filósofo alemão Peter Sloterdijk, como homenagem aos pequenos grupos humanos que aqui e ali teimam em desejar e fazer do mundo um lugar melhor para viver.

Giovanni Boccaccio é o poeta que tornou inesquecível para os europeus o teorema da sobrevivência na pequena comunidade em meio ao desastre do grande. O Decamerão hoje ainda pode ser lido como peça didática sobre a relação entre alegria regenerativa e pequena política.

Depois que a peste irrompeu em Florença, em pouco tempo viu-se decaírem todos os laços burgueses e humanos entre os indivíduos, como se uma peste psíquica tivesse sobreposto a física. A estada na cidade agonizante torna-se um pesadelo para os sobreviventes. Como os florentinos já não sabem se devem temer mais a contaminação ou os saques ou a fome, eles caem numa desorientação equivalente a uma paralisia.

Na cidade que perdeu sua obra conjunta, pois não protege mais o bem-estar dos cidadãos, de repente tudo está perdido e tudo é permitido. Sujeitos de medo atomizados acocoram-se em suas casas ou rebentam na rua. Nessa situação, uma jovem mulher toma a iniciativa e convence seis de suas amigas e três rapazes a retirar-se juntos a uma quinta próxima aos portões da cidade, para se conservarem e resistirem até o fim da praga com serenidade e humanidade. É assim que se chega ao memorável arranjo que prepara o contexto do livro de Boccaccio.

Nessa obra básica do humanismo a frivolidade aparece a serviço das coisas mais sérias. Sherazade narrou em prol da própria vida; os jovens florentinos que se reuniram ao redor da graciosa Pampinea, narram em prol da possibilidade do pertencer-se de pessoas depois da decadência da forma política.

Eles encarnam a decisiva lição de todas as ciências modernas da humanidade: se as grandes ordens se partem, a arte do pertencer-se só pode recomeçar a partir das pequenas ordens. A regeneração do homem pelo homem pressupõe um espaço no qual um mundo se abre com a convivência.

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