muito pros olhos, pouco pra barriga

A frase acima está simplificada para caber no título. Completa, ela é de Josué de Castro, em seu conto Ciclo do Caranguejo (1935): a saga da família Silva que, perseguida pela fome, foge do árido sertão pernambucano para tentar a sorte na capital (segundo boatos, lá o governo bom cuidava dos pobres e todos podiam comer até se saciar).

Logo de chegada a família viu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e a rua fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertado como sempre. Muita coisa para os olhos, pouca coisa para a barriga.

Josué de Castro, médico brasileiro, cidadão do mundo, foi indicado duas vezes ao Prêmio Nobel pela coragem e pioneirismo de suas pesquisas sobre a fome e a miséria. Mesmo como embaixador do Brasil na ONU e gozando de enorme prestígio internacional, teve seus direitos políticos cassados em 1964, nos primeiros tempos da Ditadura Militar. Josué era perigoso para os poderosos “amigos” dos militares. Morreu no exílio quase dez anos depois. Se estivesse vivo, completaria 100 anos ontem, 5 de setembro.

ornitóptero

A palavra do dia é Ornitóptero e a definição vem do site Gambiarra: “máquina voadora com asas, que imita aves ou insetos – remete ao tempo de sucessivas experimentações e falhas até culminar com a invenção do avião por um conhecido gambiarreiro”.

DelFly MicroA diferença para os aviões comuns é que nestes a elevação é gerada através de uma asa fixa. Ornitópteros funcionam como pássaros: o motor provoca o batimento das asas e estas criam as condições para voar.

Tem ornitóptero de todo tamanho, até um robozinho de apenas 3 gramas, 10 cms de asas que carrega uma microcâmera. A libélula-espiã voa em DelFly.

intérpretes, explicadores

Na linha das novas profissões que surgem pelo mundo, achei bem interessante a proposta da National Association for Interpretation, que valoriza o patrimônio natural e cultural das comunidades locais através do estímulo à busca de lugares e histórias que no mais das vezes permanecem escondidos, desconhecidos delas mesmas. E o melhor é a produção de informação adaptável aos interesses dos mais diversos públicos.

narradores de javeEm sua Conferência anual, em março próximo, a NAI debaterá a difusão dessas técnicas visando o desenvolvimento de um turismo histórico sustentável, que estimule e beneficie as economias locais.

Não sei porque, mas lembrei do delicioso filme Narradores de Javé.

exoplanetas telúricos

corotQue título, hem. Quase um trava-língua. Mas é assim que se chamam os planetas fora de nosso sistema solar em condições de abrigar vida semelhante a da Terra. E é atrás de planetas desse tipo que partirá do cosmódromo de Baïkonour, Cazasquistão, daqui uns dias, a primeira caravela estelar, batizada de CoRoT.

CoRoT é um satélite apelidado de caravela por carregar, mais do que sofisticados instrumentos, a expectativa de descobertas celestiais extraordinárias, comparáveis, na devida proporção, às da época das grandes navegações oceânicas, 500 anos atrás.

O satélite permitirá estudar a sismologia estelar (estrutura e evolução das estrelas) medindo variações na intensidade das luzes e vibrações emitidas pelas estrelas com precisão jamais alcançada. Aliada a longos períodos de medidas em cada região do céu, levará à detecção, pela primeira vez na história da humanidade, de planetas muito distantes. Estima-se que “CoRoT” descobrirá cerca de mil planetas gigantes do tipo de Júpiter e uma centena semelhantes à Terra.

Participação brasileira na missão “CoRoT”

O Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP coordena a participação brasileira na missão espacial “CoRoT”. Vários de seus docentes estão envolvidos em projetos observacionais com o satélite. É a primeira vez que os astrônomos brasileiros participam da construção de um satélite científico tendo os mesmos direitos que seus parceiros europeus na exploração dos dados colhidos.

corot

virando gente

Dizem os historiadores que quanto mais avançamos no futuro mais nos aproximamos do passado, e não se trata de nenhuma lei do eterno retorno ou coisa parecida. Ocorre que quanto mais a arqueologia e a paleoantropologia aprimoram técnicas e instrumentos de suas pesquisas, melhor decifram as pistas sobre de onde viemos e como nos tornamos o que somos: esses esquisitos e imponderáveis seres humanos.

Becoming Human é um dos mais interessantes documentários interativos que já vi, indicado para quem quer se atualizar no paciente estudo de nossas origens. Não é uma historinha ao estilo Alegoria da Criação cuja função é apaziguar consciências, mas sim de situar as descobertas no longo e tumultuado trajeto/processo que nos trouxe até aqui.

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Agora, duro mesmo neste cenário é escolher por qual montanha começar a escavar.

origem da desigualdade

Entre as narrativas de origem que venho colecionando não poderia faltar o clássico Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, escrito nos idos de 1750 pelo grande inspirador do romantismo e do humanismo Jean-Jacques Rousseau.  

rousseauNo Segundo Discurso, como é chamado (o primeiro trata de Ciências e Artes), Rousseau toma a inscrição do Oráculo de Delfos – conhece-te a ti mesmo – como ponto de partida e de chegada. Assim ele argumenta: “…como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens?”

Ele então cria a figura do homem natural, primitivo, que é sempre bom, para compará-lo ao de sua época (que pouco mudou em essência até nossos dias), corrompido pelos costumes e pela civilização.

No início da leitura, cheguei a pensar que no tempo em que Rousseau redigiu o Discurso não havia a palavra diversidade, mas ele mesmo a utiliza algumas vezes para referenciar coisas ou qualidades, nunca os humanos.

“Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.”

a estética da informação

O volume alucinante de informação produzida no dia a dia (do qual retemos e manejamos apenas uma parte) torna essencial a pesquisa de novas formas de organizar e apresentar dados complexos de maneira simples e inteligível. Dessa necessidade vão brotando novas linguagens, novos formatos, novas filosofias.

Para quem trabalha na área, ou mesmo para contadores de histórias que desejam explorar os novos meios de comunicação, o blog information aesthetics, do professor da Universidade de Sidney, Andrew Vande Moere, é uma indispensável fonte de conhecimento e inspiração.

complexification

Complexification é outro site que também serve aos mesmos propósitos.

tag origens

Semana passada comecei a pesquisar mais fundo narrativas de origens de várias coisas, incluindo o universo, o homem, a consciência, a inteligência, para um trabalho que estou produzindo e que vai refletir em alguns posts aqui. Por hora, ficam alguns achados.

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Resposta pra tudo – Neste blog criacionista encontrei criativas respostas para o confronto da bíblia versus seus maiores problemas: as descobertas científicas e a curiosidade infantil. Como exemplo, a questão da etnia de Adão e Eva:

“Não eram nem brancos, nem negros, conforme se pode concluir das evidências bíblicas. A palavra “adão” vem da mesma raiz hebraica da palavra edom, que significa “vermelho”, o que faz muito sentido, uma vez que Deus fez Adão da terra. Além disso, a palavra “homem” deriva do latim humus, que também tem relação com o solo. Portanto, de acordo com as Escrituras, os nossos primeiros pais tinham coloração avermelhada. As raças atuais são apenas modificações (e até mesmo degenerações) da original”.

Um viva pros índios!

degenerado
O blog oferece explicações até para questões complicadas como dos dinossauros, ressaltando a dificuldade de “imaginar que Deus tenha criado um animal como o Tiranossauro rex“. Se lhe interessar, veja lá.

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No campo científico – das narrativas cosmológicas baseadas em estudos, pesquisas, questionamentos, experimentos, verificações, evidências e, acima de tudo, trocas – já ampliei meu simplório saber nas primeiras linhas da investigação.

Sempre tive a Teoria da Grande Explosão (big bang) como surgida em meados de 1960. Não imaginava que ela levou mais de 30 anos para se impor sobre as teorias concorrentes dentro da comunidade científica, nem que o rudimento da idéia – o átomo primordial – foi delineado por um padre, isso mesmo, um padre (nem todos são bitolados).

Também não sabia que o nome big bang, que tornou uma complexa teoria científica em imagem amigável e popular, foi dado sem querer, pior, de modo sarcástico, na pretensão de desqualificá-la, pelo seu maior oponente, o físico Fred Hoyle, defensor da Teoria do Universo Estacionário. Isso ocorreu num programa da rádio BBC, nos idos de 1950. Caso exemplar de “bang que saiu pela culatra”.

Segundo analistas dos fenômenos da comunicação, o nome Big Bang continha as características essenciais, por ser bombástico e imagético, que faltara até então ao discurso das ciências para adentrar no território das alegorias primordiais oferecidas pelas religiões. Isso se deu no momento mesmo em que a Sociedade do Espetáculo começava a ser detectada. Yé, nossa origem não pode ser qualquer coisa sem graça não.

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Tá bom por agora, vou continuar minha busca pelos australopitécnicos. 😉

vagas para melhoristas

A última edição da revista Exame traz matéria blablablá sobre os ‘empregos do futuro’. Mesmo sabendo das impossibilidades práticas, ainda prefiro imaginar um futuro sem empregos, isto é, sem empregados nem patrões. Um futuro no qual todas as empresas sejam cooperativas: as decisões sobre os negócios e os resultados dos esforços dos trabalhadores divididos de maneira mais justa e equilibrada. Simples desejo, talvez, pros netos dos meus netos.

Mas voltando à matéria, gostei especialmente desse trecho:

No livro O Dicionário do Futuro, a badalada pesquisadora americana de tendências Faith Popcorn afirma que em 2015 mais da metade da população irá trabalhar em profissões que hoje não existem. Segundo ela, habitarão o mundo dos negócios, por exemplo, os “sussurradores”, especializados em lidar com consumidores enraivecidos e cada vez menos tolerantes aos deslizes das empresas, ou “especialistas em simplicidade”, pessoas cuja missão será reduzir a complexidade dos softwares e das redes de computadores das companhias.

Já faz um tempo, descobri uma dessas profissões do futuro (sutil diferença falar emprego ou profissão do futuro), pela qual me encantei: são os chamados melhoristas, manipuladores de recursos genéticos de plantas e alimentos, como bem explica a empresa Seminis:

  • Compreendendo as leis de hereditariedade, os melhoristas de planta podem cruzar uma pimenta grande amarela com uma pimenta pequena vermelha para criar um híbrido que é grande e vermelho. Neste caso, as características para o tamanho e a cor vermelha são dominantes (o amarelo é uma característica recessiva). As características como os níveis nutricionais operam sob as mesmas leis mas muito mais complexos.

melhoria

  • O processo de selecionar e cruzar as melhores plantas existe desde os primeiros dias da agricultura quando as colheitas eram primeiramente domésticas. Hoje, as técnicas de hibridização são mais sofisticadas mas o processo em si é basicamente o mesmo.

Tirando a distorção causada pelos interesses dos mercados – melhor melhorista é aquele que gera mais lucros às empresas, não necessariamente os melhores recursos aos produtores e melhores produtos aos consumidores – de resto a profissão é sensacional. Deveria ter melhoristas em todas as atividades.

a ficção, em tese

Como pesquisador, leio várias teses nas minhas áreas de interesse, mas em geral, o acréscimo ao conhecimento por elas trazido é muito muito baixo, próximo ao desanimador. É raro pintar uma diferente, com boas questões e proposições:

“Esta tese pretende sustentar que as ficções não são um discurso rival ao da realidade, da verdade e do conhecimento científico e que, portanto, não podem ser entrincheiradas em acepções que as asssociam à ilusividade, à fraude, à mentira ou à falácia.

Considerando que não há nenhum fundamento primeiro a engendrar o conhecimento, a não ser a sua instância ficcional facultada pela ação possibilitadora do estético – uma categoria que será discutida a partir do recorte estabelecido pelo filósofo Wolfgang Welsch -, verdade, conhecimento e realidade serão problematizados no marco das leis da ficção, em virtude da modelagem que realizam no material do mundo, forjando, alterando e intermediando nossas relações individuais e coletivas, além de organizarem os repertórios culturais das sociedades e sistematizá-los em modelos a serem compartilhados.

O conhecimento e a verdade, por sua textura ficcional, passam à condição de categorias estéticas, o que nos remete à compreensão da ciência como um campo de estetização que opera com noções e conceitos conhecidos e disponibilizados pela arte.”

[ ? ] Ainda não descobri quem é o autor/autora. Desconfio, por similaridade, que é Martha Alkimin, professora adjunta do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ.

tecnografia

Certas expressões mais vale ilustrar que definir:

Foi José Veríssimo quem publicou o primeiro artigo de análise de Os Sertões, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 3 de dezembro [1902]. Veríssimo abordou o livro de Euclides da Cunha como obra de literatura, história e ciência e estabeleceu um padrão de leitura que seria seguido por muitos intérpretes. Apesar dos elogios à qualidade de poeta, romancista e artista do autor, fazia reparos ao abuso dos termos técnicos, das palavras antigas e inventadas e das frases rebuscadas, julgando o seu estilo muito artificial e gongórico.

Euclides respondeu a Veríssimo, em carta do mesmo dia. Agradecia a crítica, mas defendia o emprego de termos técnicos e a aliança entre ciência e arte, que considerava a tendência mais elevada do pensamento. Convencido de que a expressão artística exige notação científica, achava necessário criar uma “tecnografia própria”, capaz de unir as diversas áreas do saber: “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo”.

Fonte [ pdf ]: concursos cespe.

A história de Canudos seria diferente se Euclides da Cunha tivesse nas mãos um celular, uma filmadora, um notebook e na rede, um blog. Aprender a manejar esses instrumentos hoje é tão importante quanto saber ler e escrever.

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sertoesPor acaso, cheguei no último dia do evento (via net). Na programação local consta a 67ª Maratona Intelectual Euclidiana, pela manhã, na sede do Rio Pardo Futebol Clube e o encerramento à tarde com uma Romaria Cívica que sai da Casa de Cultura Euclides da Cunha e termina no Recanto Euclidiano, com Festival de Fanfarras Rio-Pardenses.

Homenagem da província ao filho universal.

dia do pai

Permito-me, como pai, singularizar esta data, tremendo 13 de agosto, e escapar do jogo mercadológico que se faz em torno. Se merecemos reconhecimento e comemoração, não creio que seja nos moldes incentivados pelo comércio, via o artifício dos presentes comprados.

Sempre disse aos meus filhos que preferia um desenho, texto ou escultura (já fizeram até com mandioca), uma geringonça qualquer que fosse de sua própria expressão e elaboração, por mais ‘pobre’ que pudesse parecer (e nunca parece porque nunca é).

Não que eu rejeite camisetas, livros, cedês ou algo no estilo que me chegue com carinho, mas porque essas coisas, no final, induzem à uma saída fácil (fora o desembolso financeiro e a camelada) e a uma certa preguiça de elaborar o que se sente, que pra mim é onde a coisa mais pega.

celulaEnfim, blablabá. Esse post foi para contar como começou meu dia: minha filha menor falando que amanhã tem prova de ciências e que gostaria que eu a ajudasse a estudar, depois do almoço. O assunto da prova é células, a dificuldade está em compreender as organelas, já ouviu falar?

“Bem, eu respondi, o que posso é aprender com você, pesquisarmos juntos, pois quando tive isso na escola – faz tempo – sabia-se muito menos e ‘ensinava-se’ de outro modo, resumo: se alguém me ensinou, já esqueci”.

E taí, para quem quiser saber mais sobre organelas. Sobre saber como ser pai, é esse dia a dia que vale mais do que qualquer comemoração, que nos ensina. Interessantes, as organelas.

glub glub

toxic colaResumo da história para quem acha que coca-cola é o máximo: Segundo pesquisas do Centro para a Ciência e o Ambiente, entidade que investiga questões de interesse público na Índia, refrigerantes da Coca-Cola e da Pepsico vendidos naquele país contém 24 vezes mais resíduos tóxicos de pesticidas do indicado pelas normas da União Européia.

Este índice é considerado altamente perigoso para a saúde humana. Os pesquisadores do Centro recolheram 57 amostras de refris carbonatados engarrafados em 25 diferentes fábricas espalhadas por 12 estados da Índia e detectaram em média um coquetel de três a cinco pesticidas em todas as amostras.

Aqui no Brasil, não se tem notícia de qualquer investigação semelhante, por isso é bom deixar as barbas de molho em algum líquido não contaminado. Mas talvez a coisa não tenha mesmo jeito. Comentando com alguns amigos esse papo da coca-cola com tóxico, eles me perguntaram: “e é mais cara que a comum?”

antinconstitucionalissimamente

http://www.redebrasileiradetransdisciplinaridade.net/

ganhou!

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De bobeira no fim de semana com duas novidades:

sketchup google
Diz lá: Ferramenta simples para criar modelos 3D de casas, plataformas e até naves espaciais.
Atenção candidatos: não se trata de plataforma eleitoral não, aqui no máximo vocês podem projetar palanques. Mas tomem cuidado para não afundar.

aptana
Promete facilitar a vida de quem desenvolve aplicações web. Falta ver onde complica. Novas soluções, novos problemas, mas é sempre bom conhecer.

grata surpresa

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Adorei esse blog. Me animou a retomar as pesquisas sobre o Pensamento Perplexivo (aberto, caótico, poético) em contraste com o Reflexivo (orientado, racional). Não que o reflexivo seja ruim, pelo contrário, mas porque é preciso enriquecê-lo com novos aportes metacognitivos. Diabo é que a perplexidade é um estado tão desconcertante que a gente foge dela como o diabo da cruz.

conto do vigário II

Ao postar a bronca contra o sujeito abaixo, lembrei do tempo em que fui repórter policial nesse jornal em Santos e passei uns seis meses na busca dos aplicadores do conto-do-vigário e suas infinitas variações. De certa forma, eram esses embustes e artimanhas que davam alguma graça à minha profissão, que de resto só servia ao embrutecimento da alma.

Sempre entendi as pessoas que vivem desses expedientes como artistas, performáticos, e o que me intrigava era o fato de não usarem esse talento “dentro” do sistema. Seriam chamados empreendedores. Porém, minhas tentativas de entrevistá-los nas raras vezes e no pouco tempo em que ficavam presos sempre resultaram na mesma ladainha.

Não havia jeito de virar o disco, de surpreendê-los com qualquer pergunta ou reflexão. Eles repetiam exaustivamente as histórias de suas miseráveis vidas e o bordão de que não faziam aquilo por gosto, mas por pura necessidade. Eu os via tão possivelmente livres daquele miserê, pelo acréscimo de outros valores em seus repertórios, que não me conformava.

Até que um dia, ao descer da moto no velho centro de Santos, fui abordado por um garoto magro, cabelo ruivo encaracolado, meio avoado – típico caipira – me perguntando onde acharia uma lotérica. Em suas mãos logo vi um bilhete e não acreditei. Eu havia sido premiado com uma performance ao vivo.

bilheteEntrei no jogo fazendo o tipo desentendido desinteressado, a procurar rápido uma lotérica para auxiliar o garoto, com outras coisas importantes por fazer.

Logo apareceu um senhor baixinho – que suspeitei ser o mestre – e a história do bilhete premiado tomou corpo. E nós poderíamos dividir o prêmio, ou eu poderia ficar com tudo em troca de um pequeno adiantamento etc e tal.

Eu queria ver até onde chegaríamos e, devo dizer, fiquei encantado. Pois eles foram comigo até a lotérica e no breve instante em que eu constatava na lista que o número e a data do bilhete conferiam mesmo, eles simplesmente evaporaram.

Pior ou melhor, não sei. Ao rever o bilhete, que seria a prova da história, notei que ele fora trocado, nas minhas mãos, sem que eu percebesse. Fantásticos. Quase bati palma. Ali mesmo, desisti de escrever sobre eles. Isso, há quase trinta anos.